Mal pude conter as
lágrimas que me alagoaram os olhos quando ouvi que o Chile estava enviando pele
humana para as vítimas de queimadura grave da tragédia de Rio Grande do Sul, e
que médicos canadenses, por serem especialistas em desintoxicação pulmonar, estavam
vindo ao Brasil para tratar dos sobreviventes.
De minuto em minuto, tudo
que se ouvia era o número de vítimas aumentando, a polícia juntando cinzas na
tentativa de resgatar alguma prova, dono da boate sendo preso e, sobretudo, a dor
dos pais gritando tamanho sofrimento.
No meio de tanta prova de
ganância – economizar em segurança - e de ilicitude – abrir o estabelecimento
para o público sem os alvarás em dia -, ouve-se que um país sente a dor dos
familiares e amigos das vítimas e, num gesto de extremo altruísmo, abre mão de
sua reserva de pele humana para socorrer os que conseguiram – e os que
conseguirem – escapar com vida, mas não ilesos. Outro, cônscio de que sua expertise
ajudaria os sobreviventes, atravessa as Américas para o bem-vindo e necessitado
apoio médico.
Esse gesto prova que há,
no ser humano, um quê de generosidade, de compaixão. De olhar para o outro e se
comover a ponto de dispor de suas reservas, guardadas para seu momento de
infortúnio, e doá-las ao que precisa naquele momento. Prova que há, nesse mesmo
DNA capaz de desviar doações a vítimas de enchentes, um gene que nos move em
direção ao outro.
No livro Pequeno tratado
das grandes virtudes, André Comte-Sponville, filósofo francês, afirma que “a generosidade trata de agir, e não em
função de determinado texto, determinada lei, mas além de qualquer texto, além
de qualquer lei, em todo caso humana, e unicamente com as exigências do amor,
da moral ou da solidariedade.”
Que lei obrigava um país a
ajudar o Brasil num momento desses? Sobretudo, porque o que aconteceu não foi
um incidente a que todos estão sujeitos; foi o infeliz desfecho da sequência de
atitudes, no mínimo, egocêntricas. Ainda assim, sem pedido, sem esperar que
passasse tempo até saber quantos sobreviveriam para precisar do transplante de
pele, o Chile simplesmente agiu, sem regras e sem sanções para o caso de não
fazê-lo.
Note-se que a atitude dos
chilenos e dos canadenses não é de piedade, que não passa de uma tristeza que se
sente em virtude da tristeza do outro, o que nem resolve essa tristeza nem
justifica aquela. Houve neles atitude sem obrigação, sem tratado internacional.
Pura e simplesmente generosidade.
Há também, na atitude
desses dois países, a compaixão que, segundo Comte-Sponville “é o amor enquanto afeta o homem de tal
sorte que ele se regozije com a felicidade de outrem e se entristeça com seu
infortúnio.” Para ele, enquanto a piedade é vertical e envolve desprezo – é
uma tristeza que despreza o outro -, a compaixão é horizontal e envolve
respeito, porque só tem sentido entre iguais; ela realiza essa igualdade entre
aquele que sofre e aquele que compartilha de seu sofrimento. Enquanto a piedade
é só uma tristeza, sem capacidade de mudar a tristeza alheia, a compaixão é
amor e, portanto, alegria. Isso não impede que fiquemos tristes ao ver alguém
que amamos sofrer, mas é uma tristeza preocupada em ajudar, não em desprezar.
Fica simples entender o
conceito de compaixão com a conhecida frase: “E se fosse eu?” Carregamos em
nosso DNA a capacidade de nos fazer imaginar o que sentiríamos se estivéssemos
no lugar do outro, de absorver sua dor e, então, de agir a fim de, ao menos,
amenizá-la.
Atitudes como essas
provam que, na essência do ser humano, há vícios e virtudes. Menos estas do que
aqueles. No entanto, quando as virtudes se mostram, convenço-me de que há
esperança – pouca, mas há – para que o homem torne o mundo um lugar menos
hostil para si e consequentemente, mais virtuoso em benefício de todos.
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